Cirurgião precisa-se!

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O orçamento de estado para 2014 é o mais violento que os meus quarenta e dois anos de idade conseguiram inscrever na minha memória. Dá seguimento a imposições muito claras da Troika, representante dos nossos credores, e curiosamente, desta vez, nem o Governo desejaria ir tão longe.

A nossa sociedade conseguiu gerar duas grandes ideias sobre a forma de enfrentar a crise. A primeira é a ideia imposta pelos nossos credores, e subscrita por três partidos políticos portugueses, tendo um deles anulado a sua subscrição quando passou para a oposição, que implica aumentar impostos e reduzir despesas de forma a equilibrar as contas públicas. A segunda, defendida por toda a oposição e por uma boa parte da sociedade portuguesa, que sugere que os cortes estrangulam o crescimento, e é o crescimento económico que nos fará sair da crise.

Como quem manda, de facto, é quem empresta o dinheiro, a primeira grande ideia acabou por vencer e é a que está a ser implementada. Mas o problema é agravado por diversos motivos. Um deles é que uma grande parte dos cidadãos portugueses acreditam mais na segunda ideia e pensam que os cortes só prejudicam a economia fazendo com que a base de apoio social a medidas desta natureza seja muito diminuta. Outro problema é a falta de competência e qualidade dos políticos, tanto no governo como na oposição, que não têm, nem nunca tiveram, ideias sólidas sobre as diversas funções do estado desperdiçando a oportunidade de produzir boas reformas e melhorar os serviços essenciais do estado. Como escolher o melhor caminho se não se sabe qual o destino? Os cortes para equilibrar as contas estão a ser feitos muito tarde, e de uma forma transversal, sem terminar com serviços inúteis ou redundantes, sem otimizar recursos, sem perceber como é que o estado poderá servir melhor o cidadão com menos recursos.

O Homem do Talho

Os cortes, feitos desta forma, não discriminam o bom funcionário público do mau funcionário público. Não descrimina o posto de trabalho útil e necessário ao cidadão, do inútil e redundante. Portugal está nos cuidados intensivos e necessita de uma intervenção imediata. Infelizmente a sociedade não conseguiu gerar um bom cirurgião, mas tínhamos à mão um excelente talhante, que até parecia ter alguns conhecimentos de anatomia. O profissional, com muita experiência a cortar carne no talho, faz o seguinte diagnóstico. “Vamos cortar a perna até ao joelho antes que a infeção alastre.”

A alternativa

Uma frase com uma profundidade semântica admirável e que alguns comentadores fazem questão de repetir até à exaustão é: “Em democracia existem sempre alternativas.” Confesso que quando ouço esta frase consigo dormir muito melhor. Pode o mundo estar a desabar, mas a paz de alma propiciada por esta frase emblemática do nosso sistema democrático é inigualável. É uma frase típica de quem está ligado, de alguma forma, aos partidos políticos pois sabem que o ciclo de alternância partidária acaba sempre por se repetir. O Socialista diz ao Social-democrata: “Agora estás lá tu mas, daqui a dois ou três anos, vou estar eu. Não te esqueças disso!” E passados quatro anos será o Social-democrata a dizer o mesmo ao Socialista. Curiosamente os partidos passam a defender o inverso do que faziam enquanto Governo.

A medicina natural

O antagonista do Talhante é, no espectro político português, um conceituado homeopata. Os seus distintos colegas, cuja brilhante experiência na governação culminou com o pedido de ajuda à Troika, foram os primeiros a rejeitar a utilização de qualquer objeto cortante para a remoção do problema que infeta o nosso país. A solução do homeopata é simples: “Os cortes provocam hemorragias prejudiciais para o crescimento e a primeira parte da solução é parar com estes cortes. Nem é admissível discutir qualquer tipo de cortes. A segunda parte da solução é um chá de tília. Muito bem, somos democratas e estamos sempre abertos ao diálogo e poderemos considerar uma infusão de cidreira.”

Com a capacidade negocial do chefe da oposição ninguém tem dúvidas que facilmente conseguirá: que a meta do défice será autorizada para 6,5%, permitindo assim evitar os cortes; que os nossos credores nos emprestem um adicional de 11,2 mil milhões de euros por ano, sem juros, para cobrir o respetivo défice até que o chá de tília comece a fazer efeito; e algum dia mais tarde irá pensar em medidas que tornem a nossa economia mais competitiva e menos dependente de financiamento externo.

E é por tudo isto que precisávamos mesmo de um bom cirurgião!

Miguel Vieira Pinto

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