Um país de especialistas

por 3 007 visualizações

Depois de uma época, não muito longínqua, onde pululavam especialistas em direito constitucional entramos numa nova era. A era dos especialistas em arte moderna. Portugal é verdadeiramente um país de especialistas.

Um ministro, um governo, Teixeira dos Santos, Sócrates, alguém, achou que se devia nacionalizar um banco que estava falido pois poderia colocar em risco todo o sistema financeiro português. Um banco conduzido à falência pela ação criminosa de diversos administradores e pela omissão negligente das entidades reguladoras. Essa instituição bancária, o BPN (Banco Português de Negócios), tinha registado no seu ativo uma coleção de 85 obras do pintor catalão Joan Miró, provenientes de investimentos feitos por sociedades offshore pertencentes ao BPN recorrendo a empréstimos do próprio BPN. Pensa-se que seria mais um esquema fraudulento para retirar dinheiro do banco. Recordo que a nacionalização do BPN ocorreu no final do ano de 2008, há mais de 5 anos.

Quando as sociedades veículo assumiram os ativos tóxicos e o passivo do BPN as obras faziam parte desses ativos. Essas sociedades foram criadas com o objetivo de neutralizar o passivo, ou pelo menos minimizá-lo, de forma a poupar os contribuintes de ficarem com todo o prejuízo da nacionalização. Estas obras de Miró têm uma base de licitação no leilão da Christies de cerca de 36 milhões de euros, mas é possível que este valor suba bastante em leilão. Terá o estado português 36 ou mais milhões para ficar proprietário dos quadros?

Ouço toda a gente a falar e a escrever partindo da premissa que os quadros pertencem ao Estado, a todos nós. Não é verdade. O Estado, por ser o único acionista das Sociedades Veículo, poderá tomar facilmente a decisão de os adquirir. Mas terá sempre de colocar o dinheiro correspondente à aquisição nessa sociedade veículo. Ouço apelidar esta situação de delapidação de património de todos. Mas qual património de todos? Os quadros não são do Estado, são do “buraco” do BPN. Se a ideia é investir 36 ou mais milhões de euros em arte, fale-se com os verdadeiros especialistas e faça-se investimentos que façam sentido no panorama artístico e cultural português. Mas num país com um orçamento para a cultura de 189 milhões de euros, dos quais 90% servem apenas para pagar salários e manutenção de edifícios, um país que está a fazer cortes em pensões e salários, isso sim, seria um verdadeiro escândalo.

Em 1917, com a revolução bolchevique, o museu Hermitage em Petrogrado, atual São Petersburgo na Rússia, perdeu centenas de obras de grande valor, vendidas ao desbarato pelos revolucionários comunistas. Estas obras pertenciam ao povo Russo e isso sim, foi um verdadeiro escândalo. Se um governo resolvesse vender os “Painéis de São Vicente” ou a “Custódia de Belém” a história seria completamente diferente. Estaríamos a arrancar de nós próprios pedaços da nossa identidade. Não é manifestamente o caso.

É agora a cultura a arma de arremesso entre os partidos. Não deixa, no entanto, de ser curioso que o Partido Socialista se manifeste com tal veemência sobre um assunto que esteve sob a sua alçada durante os anos de 2009, 2010 e quase metade de 2011. O governo tinha na altura três opções: comprava, vendia ou deixava ficar no cofre da Caixa Geral de Depósitos. Optou pela última. Neste momento só existem duas: comprar ou vender. Qual seria a opção do Partido Socialista se fosse governo neste momento?

Convido o leitor a ler as publicações no facebook de Alexandre Pomar, crítico de Arte e filho do famoso pinto português Júlio Pomar. Apresento aqui alguns excertos:

« É do mais linear bom senso admitir que os activos na posse da Parvalorem, quadros ou casas, se destinam a amortizar dívidas (e as obras do Miró ficaram logo à guarda da CGD à conta dos empréstimos que concedeu), e que se uma só das pinturas do Miró (vá lá, 2 ou 3 das mais sofríveis) forem oferecidas pela Secretaria de Estado da Cultura ao Museu do Chiado ela tem de ser paga pela SEC à Parvalorem em dinheiro contado. As obras não são "nossas" (felizmente), nem são do Estado, não foram integradas no património do Estado. Não é nem era uma prioridade comprar aqueles Mirós, ou quaisquer outros. O PS entrou na fase do charlatanismo político.»

« (…) no The Guardian, onde se refere que por toda a parte as obras na posse de outros bancos falidos têm ido parar aos leilões, certamente sem o alarido ridículo fabricado por suspeitíssimos especialistas e mercadores. »

Mas em Portugal os especialistas a ter em conta são Joana Marques Vidal, Procuradora Geral da República, António José Seguro, Gabriela Canavilhas (ex-ministra, ex-pianista). O cidadão comum, sem pensar que terá sempre de pagar a fatura, deixa-se levar na onda, guiado pela ira que sente em relação às políticas do governo, e torna-se também especialista em arte moderna criticando a venda.

Em 2016 o governo de então terá de lidar com um problema financeiro-cultural muito mais complexo. Termina o acordo de comodato entre Joe Berardo e o Estado Português e existe uma cláusula com a opção de compra. Temo que na altura esteja num prato da balança a dívida de Berardo à CGD e a coleção de arte no outro prato. Teremos então o segundo filme desta saga de especialistas em arte contemporânea.

» Sabe o que é a Classe Média?